Na estreia da newsletter semana passada, escrevi sobre imaginar novos mundos através da ficção e o quanto esse assunto estava me atravessando. Vinciane Despret me proporcionou um belo encontro com o que eu procuro: outras maneiras existentes de relacionar literatura e ciência, maneiras essas que reforçam a vivacidade da coexistência multiespécie em mundos possíveis de serem criados.
Em Autobiografia de um Polvo e outras narrativas de antecipação, Despret se utiliza da ficção para pensar em um terceiro milênio em que a therolinguística (disciplina científica que estuda a linguagem dos animais) está plenamente desenvolvida. Neste livro, Despret traz três estudos de therolinguístas: poesia vibratória das aranhas, arquitetura religiosa dos vombates e os aforismos dos polvos. Todas as histórias exploram as diferentes maneiras que os animais encontram para se expressar.
Dentre essas histórias, fui imensamente fisgada por "Autobiografia de um Polvo ou a comunidade dos Ulisses", título que só nos diz algo quando nos aproximamos da linguagem dos polvos traduzida pelos Ulisses. Nessa fabulação, Despret imagina uma comunidade repleta de sim-crianças, nomeadas de Ulisses. Essas sim-crianças recebem, ao nascer, a designação de um animal simbionte que está seriamente ameaçado de extinção. Neste caso, os polvos. Essas sim-crianças têm a capacidade de provar, sentir e ouvir com seus simbiontes.
Sobre isso, elucido algo importante defendido por Haraway: não é no sentido deleuziano de devir-polvo, mas sim, devir-com-polvo. Pois a marca da diferenciação é importante para a tradução das linguagens de diferentes naturezas.
Nesta comunidade de Ulisses, pescadores encontraram, sobre restos de cerâmica, fragmentos de texto de uma escrita desconhecida. Identificou-se que a tinta preta da escrita era de um polvo. E aí veio o desafio para os therolinguístas.
Como traduzir as expressões literárias de outros seres?
Uma das tentativas de traduzir as expressões dos polvos é através das mudanças de cor da pele deles. O polvo Heiti, que sonha ao dormir, foi um dos facilitadores:
Desde minha infância, sempre tive um fascínio muito grande por polvos, mas nunca tive a oportunidade de me aprofundar em suas expertises. Até me deparar com o seguinte combo: os livros Outras mentes e Autobiografia de um polvo e o documentário Professor Polvo.
No capítulo intitulado "Vendo cores" do livro Outras mentes, Godfrey explica que os polvos são daltônicos. Mas então, como percebem as cores para se adaptarem a elas? Ele nos conta que a própria pele do polvo é capaz tanto de sentir a luz como também de produzir uma resposta que afeta sua cor. Os polvos enxergam através de sua pele.
A partir de sua aparência, o polvo é capaz de tornar visível suas emoções, sua tranquilidade, sua raiva ou seu medo, seus desejos, seus prazeres - cores claras e cintilantes para paixões felizes, sombria e sem matizes para as tristes. Dito isso, é possível imaginar que os polvos compartilham histórias e fazem literatura a partir das cores.
Além disso, sabemos que os polvos não têm quase nenhuma parte dura, e, consequentemente, conseguem se espremer por um buraco do tamanho do seu globo ocular, podendo adaptar a forma do seu corpo da maneira que necessitar. O corpo de um polvo representa as mais diversas possibilidades de existir. Eles podem criar seus próprios mundos a partir do que os rodeiam. Se misturam às rochas, corais, areias e conchas, se tornam tudo. Como se carregassem o mundo dentro de si.
É nos polvos que me inspiro para pensar em novas possibilidades de fazer mundo.
Gabriel Tarde diz que o ser vivo tende a se apropriar do mundo, e não a se adaptar a ele. Talvez seja o que nos falta para enfrentar a emergência climática e a perda do mundo já conhecido. Diferente do que se escuta, Tarde propõe que possamos conhecer o mundo para fazer parte dele como terrestres, entendendo tudo o que faz a Terra existir. O que faz ela existir está longe do antropocentrismo. Está mais perto dos polvos.
Para isso, volto às fabulações de Vinciane Despret sobre as sim-crianças da comunidade de Ulisses. Quando essas crianças entram na vida adulta, as habilidades sensíveis com seus simbiontes se reduzem até desaparecerem completamente. Só voltam a existir se decidirem adotar uma sim-criança. Estar em contato com a infância é o único jeito de toda habilidade ser reativada ou lembrada.
Acredito que esse fato seja um lembrete para preservarmos o nosso infantil. A infância sempre é multiespécie. Podemos continuar dançando com os polvos.
Outro aspecto favorito da comunidade de Ulisses, é a sim-lingua. Nesta invenção de uma nova forma de se comunicar, o sujeito é apenas o destinatário passageiro de um verbo que o agarra. Vinciane Despret imagina que essa gramática desconhece a forma do singular, um verbo está sempre no plural, mesmo quando há um único sujeito designado - "o sujeito é aquele que se apresenta, mas há uma multidão atrás dele". Nenhum verbo, dizem eles, se sustenta sozinho.
Na sim-língua não se diz "eu vejo", mas "algo se deixa ver"; Não se diz "espero a chuva", mas "a terra aguarda a chuva".
Em Professor Polvo, Craig Foster, cineasta e vivente dos oceanos, passa a mergulhar todos os dias na mesma floresta de algas, criando uma relação muito bonita entre espécies, humano e polvo, além de tudo o que os rodeia.
Ao longo dessa experiencia de aliança contínua entre espécies, Foster sentiu que a vida dele estava se espelhando à vida do polvo. O tentáculo arrancado por um tubarão, simbolicamente, representava as perdas que tivera em sua vida, mas, sobretudo, a capacidade de recriação e autorregeneração.
Didier Debaise nos lembra que "tudo está dito nas narrativas das coisas terrestres, porém cabe a nós articulá-las, intensificar seu significado e acompanhar as proposta que carregam com elas; em suma, inventar novos sentidos que nos definam como coisas terrestres entre outras coisas". Uma alternativa para adiar o fim do mundo é, de fato, se espelhar e fazer alianças com os não-humanos.
No final do documentário, nos deparamos com o fim intrínseco da vida de um polvo fêmea: a morte após dedicar toda sua energia no cuidado dos ovos. De 2 em 2 anos, no máximo, os polvos nascem e morrem. É uma vida intensa, mas curta.
Como fim do texto, trago a morte. Mas postulo a morte como uma trajetória circular, início, meio e início novamente. Explico: William Hamilton, um biólogo amante de insetos, descreveu como gostaria que fosse seu enterro, uma década antes de sua morte. Queria que seu corpo fosse levado às florestas do Brasil e deixado lá para ser comido por um enorme besouro alado, o Coprophanaeus, que usaria seu corpo para nutrir os filhotes, que então sairiam dele voando.
Hamilton se vê parte da natureza e sente que deve retornar à ela, uma competência incomum nos tempos antropocêntricos em que vivemos.
Assim como os polvos escritores de Vinciane Despret, nós que escrevemos, também escrevemos pela natureza que nos faz parte. A escrita como o natural.
Nenhum verme ou mosca sórdida para mim. Vou zumbir no crepúsculo como uma abelha enorme. Serei muitas, zumbirei como um enxame de motocicletas, serei levado, corpo alado a corpo alado, para a vastidão brasileira, sob as estrelas, alçado debaixo dos lindos élitros que todos teremos sobre as costas. E assim, finalmente, também brilharei como um besouro violeta sob uma pedra.
Infelizmente, o último pedido de Hamilton não foi cumprido. O biólogo foi sepultado perto de Oxford, mas Godfrey acredita que, com o tempo, carregado por uma gota de chuva, ele chegará ao Amazonas. A natureza se encarregará de seu desejo.
Incrível! Abriu um novo mundo na minha cabeça. Obrigada por compartilhar 🪲🐙